domingo, 16 de agosto de 2015

De pássaros e gatos

A minha história com gatos começou bem cedo, nas férias encantadas da casa da minha avó,  em Conquista, Triângulo Mineiro, com gatos branquinhos e angorás. Bichanos, chaninhos.
Depois eu, menina de apartamento, quase não pude tê-los. A não ser um, que pulou da mangueira da casa vizinha para nossa área de serviço, e que eu carreguei no colo por uns dias, até que fugisse de novo. A minha tendência aos problemas respiratórios, desde muito novinha, tornava proibitiva a convivência. Mesmo assim segui adorando gatos.
Já casada, morando em uma casa grande tivemos alguns, mas não eram criados dentro. De uma hora para outra, essas pessoas que odeiam animais jogavam “bola” pra eles, suspeitávamos da vizinha. Sumiam.
Lembro-me também de uma gata que pariu em casa um gatinho cego. Cuidei dele com mamadeira, mas um dia amanheceu esticado. Uma outra ainda me doeu mais. Chamava-se Mia, presente de um amigo do teatro. Era alaranjada e seus olhos enormes e doces. Sumiu por uns dias e comecei a ficar preocupada. Perguntei aos meus onde será que ela estava e então não puderam mais esconder. Foi a filha que contou: encontraram a gata morta e enterraram no fundo do quintal, naquele dia mesmo do churrasco de família, reuniões que aconteciam em muitos domingos na casa antiga. Eu nem percebi nada, ficaram com dó de me contar. Eu chorei, sou chorona e gostava dela.
Na casa amarela tive gatos que perambulavam durante a obra e que até hoje vêm aqui. E a chegada de Riva, de quem já contei. É uma companhia para a solidão. Esses dias foi castrado e provocou uma crise em mim. Tenho esse direito? Ainda tive a ninhada de gatinhos deixados igualmente no quintal, quatro. Deram trabalho, mas acharam donos que até hoje me agradecem. E Branquinha que foi deixada nos fundos da casa, com olhos assustados e muita fome. Um amigo ficou com ela, acho que mais pra me ajudar. Ganhou um colar de strass e lugar macio pra dormir. Tenho notícias de que é muita arisca e quebra coisas à noite. Gatos.
De pássaros presos nunca gostei, mas o primeiro foi um canarinho. Uma amiga não tinha com quem deixar quando viajou e ele ficou na minha casa. Juquinha. Aprendei a cuidar dele. Cantava muito à tardinha. Bichos são bons para quem gosta de falar sozinha como eu. Rendem boas conversas. Quando me casei ele ficou em casa da minha mãe. Morreu de velhice? Acho que sim.
Quando morei num apartamento, ao chegar do Acre, onde trabalhei, encontrei um ninho de sabiá na janela do banheiro. Foram dias de estranha e curiosa convivência. Eram três filhotes e a mãe. Eles cresceram ali, colados ao vidro opaco e me alentaram naqueles dias sombrios. Com metáforas, por favor. Uma manhã já não estavam.
Um dia nessa casa de teto alto entrou um passarim, bem pequeno. Fiz de tudo para que saísse, mas ele não conseguia. Ficou, passou a noite, dando pequenos saltinhos sobre a cama onde estava e depois dormiu em cima de um quadro. Quando abri a porta do quarto de manhã,  ele estava lá, piando baixinho. Ficou voando pela casa até que arranjei um jeito arriscado para que saísse. Fechei tudo e deixei apenas uma fresta na janela de guilhotina. Então fui soltando lentamente, até que ele entendeu e voou.
Ontem estava trabalhando quando ouvi sons que misturavam miados e pios. Custei a entender que Riva tinha caçado um pássaro, que lutava para se soltar, na cozinha. Foi um desespero. Corri em direção a eles, toquei pra fora. Queria que ele soltasse o pássaro, mas não sabia se já estava muito machucado,  se adiantaria  alguma coisa. Então queria que ele saísse e terminasse aquilo longe de mim. Ele fugiu para o meu quarto, debaixo da cama. Fiquei mais nervosa. Gritei. Até que o pássaro se soltou. E estava vivo. Instantes de alegria e alívio. Toquei Riva do quarto, maldizendo seus instintos. Tranquei a porta. Respirando pensei um pouco no que fazer. Voltei lá e vi que ele parecia bem, mas estava mancando um pouco e tinha perdido todas as penas do rabo. Não conseguiria voar. Precisava de um tempo. Fui à loja de bichos e comprei uma gaiola e alpiste. Pedi ajuda a um amigo, o mesmo que levou Branquinha. Colocamos o pássaro dentro da gaiola. Era um pardal? Ele ficou quieto, muito quieto. Pendurei a gaiola na tesoura do telhado. Então saí para trabalhar. Riva só me olhando, sabendo que desaprovara aquilo.
Fui com a sensação de que o pássaro não sobreviveria. Ao voltar, à noite, observei que ele estava na mesma posição. Aperto no peito. Mais um que vinha se somar aos outros que me assaltam. Sempre à noite. Evitei pensar. Amanhã, amanhã eu resolvo isso.
Logo cedo já sabia que tinha morrido. Procurei minha enxada, abri uma pequena cova. Perto de uma roseira. Abri a gaiola, nas mãos um pedaço de pano velho, resto de um pijama. Aquele serzinho, tão leve. Por isso voam. Ajeitei o pano, enrolei, tampando o bico longo. Pardais tem bicos assim? Acariciei-o um pouco e rezei, antes de deixar o corpo no fundo da covinha. Era a primeira vez que enterrava um passarinho. Puxei a terra com as mãos, pouca. Depois por cima coloquei uns tijolos. Da porta da sala Riva olhava, sem ter coragem de se aproximar.

Pássaros e gatos.  De tudo fiquei pensando: na natureza dos bichos. Na nossa natureza.



segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Dos sonhos


Logo depois de admitir que não se lembrava de seu nome, a mulher entrou em estado de silêncio. Não conseguiu dizer palavra. Mesmo o café com pão e manteiga, tão saboroso e nostálgico, arrancou dela qualquer som.
Recolhida ao quarto estava agora. Os olhos vazios, nem chorar mais conseguia. O rio de seus olhos secara. Sabia que precisava de um novo plano. “Preciso comer, preciso remar, preciso dormir, preciso chegar, preciso viver...” Assim atravessou a tormenta. Agora eram outras as necessidades. Estava sentada numa cadeira confortável que ficava perto da janela do quarto. Só então reparou que era uma suíte. Aquela porta à esquerda devia ser o banheiro. Caminhou até ele, abriu a porta e se deslumbrou com uma pequena banheira. Acreditou que um banho poderia fazer bem. Há quanto tempo não tomava um? Ela que gostava de chorar debaixo do chuveiro, deixando as lágrimas se misturarem ao jato morno. Ela que cantava de alegria ou de tristeza. Ela que... Despiu-se e viu seu corpo no espelho. Estava magro, os seios mais murchos, os pelos crescidos. Temperou a água e deixou que escorresse, enchendo a banheira. Entrou e deitou-se, molhando também os cabelos. Fechou os olhos, a sensação de água limpa e quente derreteu sua dureza, soltou pequenos ais. Queria ficar ali dias e dias, queria se liquefazer e depois ir pelo ralo, queria sumir. Só isso. Chega. Para. Reage. (Sempre aquela outra, do lado de lá, dando ordens, empurrando-a pra frente). Fez espuma com um sabão de ervas, esfregou-se, com vigor. Tirar a pele morta. Depois enxaguou-se usando a ducha. Puxou a toalha que estava na parede. Enrolou-se e saiu. O espelho agora embaçado não registrou a nova mulher. Mais leve, recendendo a sabonete. Fez um turbante com a toalha menor, adorava turbantes. E acreditava no poder deles. Foi enxugar-se no quarto. Queria agora era ter um vestido limpo e novo para usar. Em cima da cama ele estava. Era azul-esverdeado com ramagens rosadas na barra. Decotado como gostava. Do lado, roupas de baixo brancas, calcinhas e um sutiã. Tudo ali parecia tão improvável, a mulher nem questionou. Como uma menina obediente trocou-se. A roupa ficou um pouco larga, mas agradou-lhe as cores e a textura, crepe. Voltou ao banheiro, penteou os cabelos que davam pelos ombros. Alegrou-se com o que viu. Quem ela era? Marina. Ana. Bárbara. Clarice. Selma. Inês. Beatriz. Nina. Maria. Preciso entender, preciso lembrar, preciso voltar, preciso recomeçar. Preciso lembrar, preciso recomeçar, preciso lembrar. Preciso voltar, preciso recomeçar, preciso entender. Sabia já do que precisava. Decidida a sair e investigar quem era, assustou-se com uma batida na porta. Quem é. Você não me conhece. Você não me conhece. Então empatamos. Riram-se as duas. E abriu-se a porta.
A mulher era negra, muito alta e tinha um sorriso franco no rosto. Abraçou-a com força. O vestido caiu bem, ficou bonita. Obrigada. Como você sabia o tamanho. Vi você no café da manhã. Ah. Trabalho aqui há muito anos. O que faz. Massagens terapêuticas, aromaterapia, reiki. Como se chama. Páscoa. O nome ressoou. Páscoa. Era um nome pouco comum. Mas a si era comum. Páscoa. Belo nome. Sim gosto muito dele. Venha comigo. Vou te oferecer meus serviços. Agora. Sim.
Ia saindo descalça, mas do lado da cama havia umas sandálias rasteiras de couro.  Calçou-as, ficaram exatas.  Apenas sorriu pra mulher. Meus pés são grandes. Os meus também. E riram de novo. Há quanto tempo não se ria. Nem sabia mais.
Atravessaram o mesmo salão de cedo e saíram pelos jardins. A direita uma sala grande, toda de vidros e cortinas. A mulher abriu a porta convidou-a a entrar. O lugar cheirava a incenso e tinha luzes artificiais. Uma música suave e repetitiva ao fundo. Deite-se aqui. A mulher obedeceu. Então Páscoa começou a aplicar-lhe a impostura das mãos, nos chacras. Sentia o calor de cada parte, todo o seu corpo em paz. Quase adormeceu, mantendo um estado de transe e relaxamento. Depois ouviu o pedido, dito em voz baixa e pausada: Agora quero que me conte seus sonhos.
A chave. A porta da memória se abriu. Ela desatou a fala, mas era calma e profunda.
“Quando ele foi embora chorei muitas noites. Minha cama virou um barco/mar. Naufraguei. Lutei para não sucumbir. Não sonhava nada. Dias de olhos abertos. Medo de afogar. Medo de saber. Quando comecei a sonhar parecia real. Era como as mil e uma noites, um sonho dentro do outro.
Nas primeiras noites sonhei que nosso amor era uma árvore. Sozinha não podia mais regar aquele arbusto. E então esquentei óleo de cozinha e joguei nas suas raízes para que secasse. Ela permanecia firme e não vergava. No dia seguinte estava com uma flor para mim. E o ritual se repetia, tantas vezes, tantas noites. Queria que aquilo acabasse. Numa manhã, achei um rastro. Era seiva, tinha escorrido para longe.
Nas segundas noites sonhei que nosso amor era um gato. Sozinha não podia mais alimentar aquele bicho. E então comprei veneno de ratos e coloquei na sua comida para que morresse. Ele comia tudo, devolvia, mas sobrevivia. No dia seguinte estava com um ronronar para mim. E o ritual se repetia, outras vezes, outras noites. Tudo parecia insano. Numa manhã, achei uma escama. Era peixe, tinha nadado para longe.”
Nas terceiras noites sonhei que nosso amor era uma criança de colo. Sozinha não podia mais criar aquele bebê. E então cravei minhas unhas em seu pescoço, para que não vivesse. Ele me olhava sem entender, mas não chorava. No dia seguinte estava com um sorriso para mim. E o ritual se repetia, noites sem fim. Era triste matar o amor. Numa manhã achei uma pena. Era pássaro, tinha voado para longe.
Três vezes matado, três vezes morrido, três vezes acabado.”

 Assim terminou a mulher. E abriu os olhos saindo do estado de sono.



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sábado, 25 de julho de 2015

Um homem bom


( Esse texto pode ser lido separadamente ou em sequência de dois outros: Noventa dias de tormenta - 19/10/2014  e  Em terra, uma história - 23/11/2014)

Aproximando-se das luzes, a primeira casa que viu era azul. Com muitas janelas e uma porta grande. Na lateral tinha uma varanda e, numa rede, alguém fumava. Caminhou com firmeza naquela direção. Abriu uma portinhola de madeira, numa cerca baixa que circundava a área, tudo muito caprichado. Parecia uma pousada. Era.
O homem se assustou com seu vulto. Levantou-se da rede, jogando na areia o resto de cigarro, uma cigarrilha de aroma adocicado, que lembrava canela. O que é isso minha senhora. Vai  entrando assim sem nem bater. Desculpa eu não queria incomodar é que. Quem é a senhora. Eu sobrevivi a um naufrágio, naveguei sem rumo durante não sei quantos dias. Meu deus. Eu preciso de.
A mulher desfaleceu antes de terminar a frase. A emoção de falar com uma pessoa depois de tanto tempo, a fome, a sede, a exaustão, foram razões mais do que suficientes, para que viesse ao chão com todo o seu pouco peso. Emagrecera mais de 10 quilos.
Acordou numa cama patente, parecida com a que herdara da sua avó, quando solteira e que depois ficou para o filho mais velho. Filho, cama, avó, casa. Novas imagens vieram. Os lençóis tinham uma estampa de flores rosadas. Por cima uma coberta tecida com fios coloridos, dessas que as pessoas vendem no litoral. Dois travesseiros apoiavam seu tronco. Era bom e macio. Um pequeno abajur laranja deixava o quarto pequeno cheio de luz delicada. Do lado da cama um pequeno caixote antigo. Uma moringa, um copo. Virou e serviu-se de água. Tomou com sofreguidão, dois copos.  No mar a água que recolhia era suja e salobra. Água de chuva, misturada com a maresia, bebida em pequenos goles. Tudo era feito com parcimônia. Não sabia se sobreviveria, mas sua dureza de cabra ensinou-lhe a viver aquela adversidade com economia.
Não tinha ideia da hora. Pelo friozinho e silêncio devia ser madrugada alta. Olhou suas mãos, seu corpo. Estava limpo. Mas não se lembrava de ter tomado banho. Lembrava-se de ter visto a casa, entrado no terreno e então tudo escureceu. Fechados os olhos, na pele sentia uma tolha molhada e morna, como se dela fora o corpo de Diadorim morto, sendo limpo pela mulher do Hermógenes. Sim, alguém limpara seu corpo magro e sujo antes de meter-lhe em lençóis alvos. Vestia uma camisola de algodão longa. Sem roupas de baixo. Estremeceu levemente ao pensar que pudesse ser o homem. Ele tinha um leve sotaque, era um estrangeiro. As cãs embranquecidas, o cabelo farto e ainda escuro. Tinha um rosto duro e uma voz que ficava no ar. Então ela lembrou-se de. Fechou os olhos com força para não ver aquela imagem. Funcionou. Eu vou dormir um pouco mais, pensou. Virou-se para o lado esquerdo e cobriu-se até a cabeça. Pegou no sono novamente. Os sonhos vieram. Ela peixe, dentro de um rio esverdeado, os cabelos longos e louros, como Ofélia. Mas não estava morta, nadava entre outros seres e flores, ramagens. Corpo deslizante na água doce, depois de tanto sal.
Acordou com sons cotidianos. A cozinha ficava perto, ouviu vozes de mulheres, barulhos de louça, talheres. Cheiro de café. Café. Café. Seu cheiro sedutor ergueu o corpo da mulher, que num átimo já estava abrindo a porta, passando por um pequeno corredor e chegando ao salão. Alguns hóspedes estavam por ali. Olharam-na com olhos curiosos. A mulher náufraga. A louca do mar. A sereia cansada, diziam baixo. Nem deu ouvidos. Continuou caminhando, descalça. O aroma inconfundível e a promessa de comida foram conduzindo aquela mulher de olhos vagos, cor de mel, os cabelos presos numa fita encarnada, para a varanda que ficava nos fundos da casa, cercada de verdes, o terreiro banhado de sol.  Sentou-se à mesa pequena, de duas cadeiras. Era o lugar mais afastado, num canto. Qualquer esforço, depois de tanto tempo em privação, parecia enorme. Ficou  respirando, cobriu o rosto com as mãos, hábito antigo. Por alguns minutos permaneceu quieta, juntando forças. Quando saiu daquela suspensão, deu com os olhos dele olhando pra ela. Era fundo aquele olhar. Mas tinha uma suavidade, uma vontade de compreender. Mesmo assim ela, bicho assustado, fez um movimento pra se levantar. Ele segurou seu braço com firmeza. Fica. Você precisa comer um pouco. Ela aceitou a quase ordem dele, a voz era macia. Voz de homem bom, pensou. Vou pedir pra prepararem um mingau para você. Eu quero café e pão com manteiga. Ele riu. Está bem. Foi buscar.
Ele preparou o pão de sal, serviu o café numa caneca de louça e trouxe. Pronto, aqui está seu desejo. Ela sorriu  e começou a comer, meio sem jeito, os farelos caindo no colo. Depois tomou um grande gole do café sem açúcar, forte. Os olhos grudados naquele pequeno banquete. Não sei ainda seu nome. Ela fez uma pausa longa. Nem eu, respondeu. E veio um silêncio.


domingo, 31 de maio de 2015

Dia de.



Fazer o domingo de novo é arrancar a pele pra que a carne viva. 
Cavucar a terra até que a mãe sangre.
Bater no peito pra lembrar da dor. 
Espatifar os vidros das garrafas solitárias, no fundo da casa. 
Deixar o choro de misturar ao solo, regar o mato. Esse que cresce. Sempre.  
Beber a água suja da bacia-mar. 
Com paciência fazer o barquinho de papel, como se fosse brincar.  
É se ver no espelho ainda forte. 
Preparar a broa e esperar seu perfume. 
Incensar a casa cantando. 
Cuidar das roupas e das pequenas lembranças para que nada falte. 
E virar a Dona Doida. A que mistura Tristeza com Alegria.
E  lembrar da doce Cora e suas roseiras. 
E chamar Clarice puxando o traço do delineador. 
Trazer Frida para a mesa do I Ching. 
Lembrar das mulheres da minha ancestralidade. 
Evocar minha doce avó Páscoa. Esperar meu duplo: a mulher xamã. Receber a garota de cabelos curtos, suave. E a moça das tatuagens que me enigmam. Companheiras. 
De extremos faço meu domingo.
 De delicadezas e pequenas violências. 
De ar e fogo. Quente e frio. Coturnos e pés descalços. 
Que seja mais um dia do resto de nossas vidas, ainda que a vida não tenha necessariamente um resto.

domingo, 10 de maio de 2015

Das mães

Hoje eu falo das mães. Da mãe do Francisco, da mãe do Lucas, da mãe da Joana, da mãe da Consuelo, da mãe da Carmen, da mãe da Sílvia, da mãe do Paulo, da mãe do Tomaz, da mãe do Gustavo, da mãe do Rafael, da mãe da Izabel, da mãe da Thaís, da mãe da Natália, da mãe da Fernanda, da mãe do Léo, da mãe do João, da mãe do Arthur, da mãe da Cely, da mãe da Maria Luiza, da mãe da Luna. De todas.
Das mães que amamentam, das que criam seus filhos sozinhas, das que tem ao seu lado um pai,  das que os amam, das que os rejeitam, das que batem nos filhos, das que os protegem. De todas.
Falo das mães que planejaram ter seus filhos, das que fizeram inseminação artificial, das que os tiveram por descuido, das que os tiveram por tesão, das que os tiveram por amor, das que os adotaram, das que os abortaram. De todas.
Das que fizeram das tripas coração, das que tiveram seus peitos inflamados, das que fizeram cesárea, das que pariram de cócoras, das que morreram de parto. De todas.
Falo das que criam seus filhos entre lençóis de linho e babás, das que os criam nos trapos, ao léu, das que deram a eles leite nan, das que fizeram papinhas, das que compraram os  potes na farmácia. De todas.
Das que lavaram as fraldas de pano, das que procuraram as descartáveis mais baratas, das que usam só o modelo mais avançado. De todas.
Das que os levaram ao médico de madrugada, das que perderam noites de sono, das que tiveram medo de perdê-los, das que os perderam. De todas.
Das desnaturadas, das dedicadas, das cansadas, das displicentes, das castradoras, das compreensivas, das enlouquecidas, das amorosas, das adolescentes, das temporãs, das insones, das insanas, das matronas, das edipianas, das novatas, das experientes.
Todas as mães do mundo merecem ser felizes. Todas.
Que sua função não seja considerada natural, mas uma escolha, uma conquista, uma benção.
Que ser mãe seja um direito e não uma imposição da sociedade, que seja um exercício pleno e feliz: compartilhar a vida, o peito, o afago, a convivência.
É isso que desejo a todos nós. Alegria mesmo na adversidade.
Feliz todo dia das mães.

ps: esse texto foi postado anteriormente no blog "Solteiras e descoladas".Peço licença...




domingo, 12 de abril de 2015

Sábado

Saiu do Maletta pisando firme, com sua calça jeans com cara de anos 70, botas usadas e uma camiseta molenga de listras azuis, navy, roubada da filha. Uns copos da velha Heineken deixaram-na leve, assim como a conversa divertida com amigos, no meio do burburinho da rapaziada, artistas e malucos de sempre. Aquele lugar era antigo e as pessoas pareciam as mesmas. Era como se tivesse 20 anos e muita esperança na vida. Os poros abertos e prontos pra viver tudo com intensidade. Ah...aquela sensação de vertigem diante de tudo. (Podiam vender em frascos. Com uma respiração teria tudo de volta.)

Andando pela Avenida Augusto de Lima, seus 55 anos voltaram, mas de outro jeito. Tinha mais coragem. Seus ombros caídos se aprumavam. Acabou? Parece que aquela mágoa se dissipava, enfim. Aquele incômodo no estômago. Acho que sim, agora sim. Como a vida podia ser plena de novo.
Bom estar em cartaz num teatro no centro da cidade, um pouco de luxo, “por deus, que eu também preciso”, diria Clarice. Depois um bar, bebida, riso. Um pouco de comemoração. Andava carente de celebrar. Bebia pouco, não comia mais carne, não fumava. E não tinha companhia. Se é que me entendem. Sem príncipes ou sapos seguia. As noites eram longas, às vezes insones. Mas hoje era tudo diferente. Era? Ou apenas queria que fosse?

Pegou o primeiro ônibus. Teria que baldear no bairro. Na viagem pensou que há mais de 30 anos fazia aquele trajeto. Quase sempre no transporte público. Ruim. Demorado. Cheio. Conseguiu se sentar e veio observando as ruas. Tudo mudou pouco. O progresso chegou, mas nem por isso o caminho ficou mais curto. Cada vez parecia mais demorado chegar. Desceu no Esquinão. O nome permanecera, mas nem existia mais o lugar de sanduíches, perto da sua casa antiga. Lembrou que ela ficava na rua de trás. Teve vontade de atravessar, virar a esquina à direita e bater. Pra conversar, sei lá... A solidão não é boa conselheira. Ou é?

Ficou no ponto. Quinze minutos foram suficientes para que desatasse a chorar. Do nada. De novo. Era dona Alegria ou Tristeza batendo? As duas, juntas. Chorou sem vergonha dos que a observavam. “Eu gosto de chorar, eu preciso....” Entendeu que ficar parada não lhe fazia bem. O I Ching já aconselhava, a terapeuta também. Manter a pulsação.


Recomeçou a andar. Seriam dez quarteirões até a casa amarela. Acelerou o passo. O frio do outono entrou pelas suas narinas. Chegou aos pulmões. Ar fresco. Respira, respira. Fechou o moleton encarnado. Passou a mãos nos cabelos, louros e brancos. Começou a sorrir de novo. Até que sua vida era boa. Era sim. Em casa um gato a esperava.

domingo, 5 de abril de 2015

Domingo de "Páscoa"



Já fiz “quaresma” muitos anos. Ficava sem comer carne e sem tomar cerveja, que na época gostava mais, por quarenta longos dias. Ia à igreja, assistia comovida a encenação da paixão, acompanhava a procissão que passava em frente da minha casa. Era bom ouvir os sinos bem cedinho, o céu ainda escuro e a cantoria. Muitas vezes levei as crianças e fomos percorrendo as ruas do bairro, cobertas de serragem, em tapetes bem singelos. Depois havia missa na Igreja de Santo Antônio da Vila Belém. Na volta passava na padaria, comprava pão e levava pra tomar café em casa. A alma agradecida e mais leve, depois de tanto sofrimento.

Um belo dia, depois de tantos trancos, pensei: não quero mais fazer isso. Acho que nas minhas preces pedia coisas erradas, coisas que estavam fora de mim. Pensando no meu caminho espiritual vejo que desde que tive filhos voltei a ter vontade de rezar. De agradecer o mistério da vida. De encontrar meu caminho para o divino. Mas de uma hora pra outra a religião recebida da família ficou insuficiente. E a cada dia busco outras fontes, outras crenças. “Reza é que sara da loucura”, “religião bebo de todas”...penso como Riobaldo Tatarana,  jagunço no sertão de Rosa.


Mas na minha casa tenho um pequeno altar com imagens de Nossa Senhora Aparecida, a madrinha. E da Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Quero ter um pequeno Buda também. Perto das conchas e cristais. O altar é inspirado em minha avó, Páscoa. A delicadeza em pessoa. Anjo da guarda que me protege pelas sendas dessa estrada. Seu altar tinha sempre rosas, colhidas do jardim. Ainda terei. Em sua homenagem no domingo de hoje mantemos a tradição: fazemos um lanche, reunindo a família. (das datas católicas, que ainda me afetam, é minha preferida).  Cada um prepara algo, como ela fazia. E celebramos juntos a ressurreição. 

A nossa.

Feliz Páscoa!

domingo, 8 de março de 2015

Clarice e Beatriz

Clarice era aquela tia que ensinava tudo que não podia. Falar gíria e palavrão. Inventar coisas em horas diferentes. Comer bobagens.
Era a tia que levava mil sobrinhos ao cinema e deixava a gente assistir duas sessões. Não posso me esquecer  da histeria coletiva em  “Roberto Carlos e o Diamante cor de rosa”, no enorme Cine Palladium.
Era a tia que fumava cigarros Capri. Chiquérrimos. Depois Holywood, que aprendi a roubar pra fumar no quintal da casa da minha avó. Acho que com uns dez, onze anos.
Tia Clarice era aquela tia que morava em São Paulo, onde eu e minha irmã íamos passear sem os pais. E que aparecia de surpresa, no fusca da família.
Tia Clarice era a tia que um dia se desquitou, coisa rara pra época, ficou uns meses lá em casa até a vida se ajeitar de novo e depois buscou as crianças, duas.
Nesse tempo, já adolescente, ficava horas escutando suas histórias. O mundo dos adultos chegou cedo em minha vida. Eles me fascinavam.
Quando se mudou pro mesmo prédio da minha mãe a gente jogava “buraco” até tarde da noite, fumando que nem umas chaminés.
Depois quando tinha já um filho pra criar morei com ela, marido e meus primos, Cristina e André, em seu apartamento, até a minha casa ficar pronta.
A vida foi afastando a gente, nem sempre consegui voltar a ter com ela aquela intimidade boa da infância, adolescência e primeiros anos como adulta. Mas ela sempre foi além de tia amada, a madrinha, uma fada madrinha. Dessas que a gente tem na vida pra nos proteger. Nunca vou esquecer sua risada. Alta, gostosa, livre.

Beatriz era a tia artista. Linda, dona de uns olhos azuis esverdeados e uma voz de soprano. Poderia ter sido uma diva da ópera. Foi professora e dona de casa, como todas nós. Tocava piano. Vivia com um bom humor incrível.
Era a tia que nos presenteava com mimos fora de época e que fazia campanha para os meus cabelos ficarem longos.
Nunca vou me esquecer de uma viagem ao interior, à velha casa de minha avó. Eu, já uma moça de 21 anos, fui tomando conta de meus irmãos junto com ela e seus filhos. Toda manhã ela acordava e fazia uma saudação ao sol, cantando uma letra inventada, naquele quintal mítico, de tantas lembranças. Perto da pitangueira.
Depois tomávamos café, ela sempre de regime, comia biscoitos água e sal com leite desnatado. À noite me chamava no quarto e perguntava, cândida: Quer um bombom? E abria a caixa de bombons de licor, enrolados em papel encarnado.
Tivemos juntas uma experiência artística. Ela musicou e interpretou um poema de minha mãe, em homenagem à Bárbara Heliodora. Eu dirigi. Ensaiávamos na casa da professora, foi um momento bom. Ela cantava, soltava sua voz aguda. Até no Teatrinho de Sabará nos apresentamos.
Novamente a vida nos afastou. A vida adulta tem esse lado duro de nos tirar do convívio com seres tão queridos. Em nome do tempo, da eficiência, do trabalho, do nosso egoísmo e sei lá mais o quê.
Mas ela sempre foi uma inspiração, uma fonte de energia e de alegria. Uma tia querida, que nos mostrava meios de burlar o cotidiano. De ser feliz.
Clarice foi primeiro. Há uns três anos. Depois chamou Beatriz. Que partiu há menos de uma semana. Imagino o tanto de risadas que estão dando lá em cima.

Um beijo, minhas queridas tias.

domingo, 1 de março de 2015

Preparação

Ontem dormi antes das dez, com o gato nos pés da cama. Isso tornou o sono leve, com medo de machucar o bichano, pequeno companheiro nessa aventura de fazer da casa amarela um palco.
Acordei cedo, na ansiedade de ver tudo logo arrumado, a dona de casa eficiente e rápida me invade. Calma, digo pra mim mesma. Aos poucos vou conseguindo domá-la. Tomo café mais reforçado, nesses dias nem consigo almoçar, preciso estar faminta. Parece que inversamente é o estômago vazio que garante a energia, o chacra solar é o mais ativado. Domingo é um corpo em ação e reação. Um corpo queimando. Acendo um incenso e rezo no pequeno altar. Nenhum pedido hoje. Pedi tanto nos dias anteriores. Reza que sara da loucura, já diria mestre Rosa. Acredito. Mas hoje só agradeço. Recebi muito.
Vou à rua comprar coisas que faltam para o preparo dos alimentos. Broa de fubá com goiabada e pão de queijo. Com o ar fresco no rosto, observo o domingo de cada um no caminho. Dia mais lento, mais leve? 
Depois varro o passeio em frente ao quintal e toda a casa. Passo pano em cada cômodo, gosto de arrumar onde habito. Ajuda a organizar meu caos interior. Quero que as pessoas gostem daqui, se sintam acolhidas.
Aplaino a terra, lavo os vidros, escolho um pedaço de carvão, deixo perto do muro. Encho a bacia de água. Separo o papel do barquinho. Coloco os vestidos no lugar.  
Na cozinha começo a fazer as comidas. Penso, penso, penso. Como gostaria de meditar por horas e não precisar “pensar”. Mas penso. A diferença é que agora existe uma calmaria. Um compreender. Um olhar mais generoso comigo. Tudo isso é fruto da solidão dos domingos e desse Domingo que hoje se abre para outros.
Já me sinto feliz por ter conseguido. Junto com a Denise, amiga essencial. Ela está comigo em cena. E tantas outras mulheres. Familiares, parceiros e amigos acarinham, escrevem, apoiam. Tocar as pessoas fortalece, impulsiona. Repenso a arte, o teatro que faço há tantos anos. Que bom ter conseguido não desistir. Tudo que vier agora é soma. É vida nova em seu fluxo infinito e belo.

Lembro-me do conselho de Hamlet aos atores: “Ide preparar-vos”.
É o que faço agora.
O resto é medo e coragem.

Bom domingo.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Mas é carnaval

Esse ano decidi ficar fora da folia. Nos últimos tempos essa data foi sempre intensa para mim, repleta de momentos que combinavam com a alegria e euforia do carnaval.  Dias felizes, embebidos na mais pura ilusão. Desde a decisão de “sair do armário” aquela tarde distante em Santa Tereza, passamos por muitas fantasias, brilhamos, brincamos, até nos pintarmos com as cores do pavão de Krishna, no ano passado: “No carnaval te conheci/ transcendental te segui...” Foram bonitos aqueles dias de chuva, suor e cerveja pelas ruas e praças. O carnaval crescendo, o amor crescendo, as ruas se enchendo e a gente vendo tudo aquilo, com um orgulho e uma esperança enormes na cidade, nas pessoas e em nós mesmos. Minha carne sempre foi de carnaval.

Agora que a paixão maior se foi (sei que um dia vai voltar mas demora tempo) recolho-me à solidão da minha casa em companhia de minha mãe. Longos silêncios e reflexões sobre a vida. Sobre o amor. Sobre viver sozinha. “Você não tem medo de ficar aqui sem ninguém?” Respondo como Diadorim: “Costumo não.” Mas por dentro sei que às vezes tenho medo sim. De mim.

De longe vejo a alegria dos outros pulsando na tela. Já é carnaval. Sorridentes, coloridos, desafiantes. Vem? Vou não. Hoje não. Antes preciso me curar da ressaca do último baile. Confesso que exagerei.
E permaneço firme na minha decisão. Até que escutei minha mãe chateada dizer: “Só porque tenho quase 85 anos ninguém quer me levar ao carnaval.” Aquilo ecoou em mim. Envelhecer tem sido uma questão que me toca todos os dias. “Talvez a gente consiga alguma coisa aqui no Serrano, mãe. Eu te levo.” Mas falo sem acreditar muito. E então fico sabendo que aqui no bairro, bem pertinho da gente, a querida Rose, minha amiga e parceira de vida e luta, fundou o Bloco das Primas. E que vai ter cortejo pelas ruas do bairro. Ah...Rose! Só você mesmo pra me fazer mudar de ideia, ainda que com o coração sujo de confetes e serpentinas antigas.

Domingo cedo saio em busca de um turbante, coloco uma saia estampada, arrumo uns colares pra minha parceira, pintamos o rosto e lá vamos nós. No caminho esboço um sorriso, respiro fundo e lembro-me do meu pai cantando pra mim, há muito, muito tempo atrás: Loirinha, loirinha / Dos olhos claros de cristal...


Resta uma esperança. Outros carnavais virão. Mesmo triste aceito o convite do moço que passa: vamos brincar?

domingo, 8 de fevereiro de 2015

sem poesia

Saiu da terapia exultante. Desceu a Avenida da Zona Sul com um andar seguro. Agora já era. Depois  de longos meses. Marcados no calendário. Uma semana dormindo nor-mal-men-te. Sem pensar neles. Nele. Nela. Isso significava muito. Muito.
Aliviada resolveu sentar-se e tomar café na padaria fina, que custava os olhos da cara.( A vida dos ricos é boa.) Sorveu o expresso com gosto, pensou em como seria dali pra frente, anotou coisas numa caderneta. "Hoje dia 7 de fevereiro encerro mais um ciclo. Uma vida nova me espera e estou ansiosa por vivê-la. Que venha." (Era um pouco dramática, vício de profissão.) 
Depois quis ir de táxi, loucura completa. Ia gastar muito. Uns 50 contos, morava longe. Mas hoje seria mais que justo. No caminho tudo parecia mais intenso e alegre. (Ah! A vida dos que tem carro é mais cômoda.) Chegou logo em casa. Decretou  dia de folga.  Não faria mais nada. Só ia curtir o momento. Quase comemorar. Abriu um vinho branco e até cantarolou Amy, arriscando uns passos na sala, rindo alto. A louca sou eu. You now, I'm no good.  

Então: 
1) abriu a coluna social diária.
2) deu de cara com uma foto de um casal sorridente, vernissage de um livro. 
3) sem respirar leu a dedicatória "para o amor de fulana". 
4) nos comentários estava escrito "o casal do ano", "lindos", "amo vocês".                            

(Eu bem que te avisei, sua idiota! Pra fazer parte disso tem que ter estômago.)

Correu pro banheiro.  Vômito e lágrimas. Por mais que se esforçasse entender aquilo era demais pra ela. Sete meses de luto jogados no lixo. Entrou no chuveiro e tomando um banho  repetia: para o amor de fulana, para o amor de, para o amor.... para,  pá! Tonteou. Seria a labirintite? Escorreu pelos azulejos brancos (davam tanto trabalho para limpar, ainda pensou). Tudo escuro, olhos cerrados. E a água, mansa e morna, escorrendo pelos seus quadris. 

Foi encontrada um dia depois pela Carla, moça que, às vezes, ajudava na faxina. Ainda respirava. 

domingo, 25 de janeiro de 2015

Mar-amor

Na primeira vez em que nos encontramos eu era uma pequena garota, de uns 5 ou 6 anos. Descemos, eu e minha irmã mais nova, as curvas da estrada de Santos com nossos tios, num fusca. O dia era cinzento, feio. Usávamos uns maiôs azuis iguais, com babadinhos. Confesso que não entendi porque as pessoas falavam tanto dele. Minha mãe, por exemplo, tinha tantos poemas sobre. Achei, com meus olhos de criança, feia e triste aquela paisagem.

Na segunda vez eu era uma adolescente, 13 anos, corpo recém-transformado, de menina em mulher. Fui de carro com os tios, fora de época, em um feriado emendado. Guarapari. Ali vi o seu azul intenso pela primeira vez, paixão. Sorrateira, fugia da casa e dos afazeres de sobrinha moça, ganhava a praia das amendoeiras. Ali caminhava e sorvia seu fluxo, em silêncio. Voltava dando uma desculpa, os olhos brilhantes como se carregasse um segredo. Na viagem para Belo Horizonte ainda sentia sua presença em meu corpo, na pele salgada e dourada e nos cabelos queimados de sol.

A terceira vez foi com a minha família. Viagem longa na saudosa Variant amarela, dirigida bravamente por mamãe. (Puxei meu pai, nunca gostei de dirigir automóveis.) O bronzeador tinha um cheiro que nunca vou esquecer. O biquíni era azul. Sempre. E o encontro se repetia ano após ano. Nova Almeida, Marataízes, Santa Mônica, Jacaraípe. Comecei um ritual. Conversava baixinho, pedia coisas, agradecia. Você, o vento,  a areia, o sol. Àquele mundo sentia pertencer atavicamente. Desde então, em novembro, já sentia aquele ar que vinha de longe, trazendo seu cheiro e seu chamado.

Antes dos vinte e um conheci sua face carioca. Copacabana. Pela primeira vez tive medo. Como eram grandes seus humores. Como era bonito ver sua imensidão. Queria ficar ali, morar perto de você, meu amor.

Com a chegada dos filhos vieram novos ciclos. Outras terras. Frias, calmas ou agitadas foram suas águas. Nossa paixão diminuiu um pouco, outras pessoas vieram compartilhar seu encanto comigo. Mas sempre, num pequeno momento, nossa hora de confissão chegava. O ritual permanecia.

De repente a vida virou, mudou tanto. Das últimas vezes andava tão melancólica que passei a achar que era delírio da minha parte dar-te tanto valor. Tivemos alguns encontros estranhos, sem intimidade. Nem sabia o que pedir ou desejar. Foi um tempo de silêncio inquieto. E então, sem planejar, parei de repetir os votos uma vez por ano. Desanimei um pouco. Busquei águas mais doces. Pensei que podia, muito bem, viver sem você.  Mas depois de uma visita às terras pernambucanas, dividindo seu azul com a poesia que me habitava naqueles dias, quase enlouqueci e usei as poucas economias que tinha para comprar um casebre perto de ti, numa vila com nome indígena. Por sorte a razão me aconselhou e não segui meu impulso. Seria um erro, como outros que andei cometendo. Sei que você não me seria fiel.  Entendo. É da sua natureza. Melhor continuar como amantes.

Esse ano quis muito ver-te novamente. Passei pelo Rio e combinamos que o encontro seria na Bahia. Onde tudo se torna intenso. Foi como reatar um romance. Você forte, quente, vigoroso, envolveu meu corpo num abraço sem fim. Encharcou-me. Como pude me separar de ti e por tanto tempo? Como pude deixar de te falar, pedir e agradecer por tudo? Vamos ficar juntos novamente. É só o que te peço. Sem condições e sem limites. Preciso-te. Amo-te.



quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Dois lugares

Há muito tempo queria fazer algo assim. Mas a família, os afetos, os amigos me levaram para outros cantos. Eu ia, cozinhava, brindava, ria, bebia, pedia. Um novo ano, amor, saúde, paz, harmonia, trabalho, um pouco de dinheiro e todas essas coisas que pedimos sempre, com medo de que, se não o fizermos, tudo possa dar errado. Era bom, mas a sensação era de incompletude. Minha melancolia, que hoje compreendo melhor, me assaltava e eu chorava escondido, no meio de tanta alegria.
Dessa vez decidi por uma intuição antiga, passar o ano em um retiro espiritual. Sem conhecidos. Sem festa. Pedi ajuda e consegui a indicação de um lugar. Perto daqui. Um movimento que passa por diversas crenças e segue mestres espirituais. Um Ashram que cultua a paz e o espírito.
Saímos cedo, de carona com mais duas moças e um rapaz suave, que nos guiava. Ao chegar encontramos a natureza presente, cuidada pelas mãos dos que formam uma comunidade. Sou de fora, visitante. Assim como mais quatro adultos e uma criança que vieram. Somos acolhidos com generosidade. A comida é vegetariana. As atividades começam com apresentações, exercícios, brincadeiras. O clima é amigável, nada sisudo. Depois conhecemos o templo, os mantras, meditação, orações. Tudo é novo e intenso. Mas o mundo de fora ainda me agita os pensamentos. Nos momentos de intervalo querem saber de nós. Todos ficam curiosos com o teatro. Então você é artista? Sim, sou. E penso no significado dessa afirmação.
Durmo na cama beliche da hospedaria como há muito não conseguia.  Estava exausta, o esforço para estar ali fora enorme. Acordo bem disposta e alegre, como há muito não acontecia. O dia final do ano começa com meditação. A meditação é sempre uma tentativa. Quando conseguimos estar ali, em corpo e alma é um presente. E assim segue o dia, como uma preparação para algo maior. Desenhamos uma mandala, escrevemos nela nossos verbos: eu sinto, eu vejo, eu ouço, eu penso. Depois novas atividades e a ceia foi servida, deliciosa, em volta da fogueira, com mantras e histórias. Sentada na grama, debaixo de uma enorme mangueira, converso com a mulher que tem o mesmo nome da minha avó. Com certeza ela estava ali, comigo. Uma hora antes vamos para o templo. Em silêncio, todos sentados, em posição de lótus. A brisa entra pelas cortinas e elas tocam meu rosto. Agradeço por estar ali. Profundamente. Depois em roda, mãos dadas, ouvimos o ano nascer, cantando. Vamos para o lado de fora, nos abraçamos. E descemos em silêncio, passando sobre o riachinho que circunda o local.
Durmo leve. Estou ainda assustada por ter conseguido. Na manhã, em jejum, na entrada do templo nossos pés e mãos são lavados. Oferecemos flores ao mestre, é bonito ver as crianças participarem. Depois o guia espiritual nos oferta uma mensagem. Desfrutem. Mas não com o ego, com a alma. Tomamos café e em roda, como no teatro, cada um fala do que vivenciou. É difícil não se emocionar. Foi assim comigo também.  Falo do primeiro dia e daquele. Da mudança operada. Termino dizendo: fico feliz em saber que um deus me habita.

Volto para a cidade. Decidi parar de fumar e de comer carne.  Vou achar um canto aqui na minha casa para rezar e meditar toda noite. Quero essa paz que consegui lá em muitos momentos. Preciso dela.

No dia seguinte vou para o Rio, com minha mãe e irmãs. Viagem resolvida assim de repente, na varandinha do apartamento. Fiquei surpresa, mas pedi um ano de muitas viagens e elas começaram a vir. Ir com nossa mãe fazer um passeio assim foi um presente. Passamos por um ano difícil, que necessitou de muita paciência e cuidados. E as mulheres, as filhas, são as que cuidam, quase sempre. Minha mãe adora o Rio, um dos lugares em que passou sua lua de mel. Eu sempre achei isso a coisa mais chique desse mundo. Em Copacabana. Mesmo lugar em que escolhemos ficar. O mar perto e tão bonito, as calçadas desenhadas, os velhos e seus cachorros por toda parte. Os dias ensolarados e as noites enluaradas. A gente se abraçava igual criança e dizia: nem acredito que estamos aqui!  
Quatro mulheres dividindo um quarto, num hotel antigo. Muitas risadas, conversas e horas para ficarem bonitas. Mamãe toda vaidosa, nunca saía sem seu baton e lenço no pescoço. Uma rainha, cuidada por todas. Foi bom vê-la inspirada, arriscando em suas falas pequenos poemas. Fomos comer pizza na orla, lanchar na Colombo, arriscamos Ipanema de metrô, verdadeira aventura, fomos à Urca apreciar a vista, com os barcos e o Pão de Açucar. Comemos muito peixe, camarão, tomamos vinho e chope. Dividimos sobremesas, carinhosamente. Planejamos outras viagens. Nova Yorque? Buenos Aires? A vida é tão bonita quando festejamos, quando sabemos o porquê de fazer as coisas. 

Na volta venho de mãos dadas com ela no avião. Penso: o Rio de Janeiro continua lindo. Deus está em toda parte. Amém.