domingo, 7 de dezembro de 2014

Um dia, o gato


Acordo cedo e tomo café com a filha. O dia promete muito trabalho. Teatro é coisa que cansa, bem sei. Já pensei em desistir, mas o tempo passou e não encontrei nada que me motivasse tanto. Nem que fosse tão (im)permanente como a vida. Deve ser por isso que prossegui.
Escuto um ruído constante, parece um pio de alguma ave, dessas que frequentam o quintal cheio de mato e sementes, abundantes pelas chuvas dos últimos dias. Fico trabalhando, sem poder me deslindar do que faço, mas com o ouvido atento. Cessa. Depois de um tempo recomeça. O que seria? Parece um pedido de ajuda. Os intervalos vão ficando menores. Enfim levanto, um pouco contrariada. No meio do mato úmido, próximo ao portão, um filhote de gato, magro, com um olho machucado, mia agora sem parar. Gosto de gatos. Mas confesso: fico irritada. Alguém jogou aquele pobrezinho ali, talvez passando pelo cano de leitura da Copasa. Volto à cozinha e pego uns pedaços de pão integral e molho com água. Leite não tinha. Ele come um pouco. Volto ao trabalho, sem concentração. Logo preciso sair. Não sei o que fazer com ele, tempo curto pra cuidar de alguém. E as minhas últimas tentativas de cuidar, não valeram muito a pena. Ou valeram? Cuidado demais sufoca. Bem sei. Disparo um comando para que minha cabeça pare com aquelas ideias, louca buscando respostas onde não há. Penso que o gatinho poderia ir embora, por conta própria, passando pelo vão do portão, que estava se enferrujando sem pintura. Saio um pouco culpada, essa nova pessoa, mais egoísta, custa a combinar comigo. Cuide de si, escuto sempre. Então, gato, sinto muito. Vou ter que te deixar entregue à própria sorte.
Passo o dia na lida, passando por muitos problemas e lugares, como todos os mortais. À noite, entre companheiros, falo dele. Eles me encorajam a ter um animal. Vai ser bom pra você. Mas eu tenho asma. Eles são carinhosos, divertidos. Minha filha não gosta de gatos. É fácil de cuidar. Não. Agora não. Chego bem tarde, meus amigos me deixam de carro no portão. Do lado de fora ouvem-se os miados, altos. Sim, o gato sobrevivera. Abro o portão, todos olham. Pronto, agora com testemunhas, não tenho como escapar. Pego o gato sem jeito, há quanto tempo não pegava em um? Nem parecia aquela garota da foto que, com uns dois anos, abraçava um gato angorá enorme, no quintal da sua avó. Em casa arrumo uma caixa de sapato, uma camisa velha e ensino que ele fique ali. Acho um resto de iogurte na geladeira, sim a casa andava fraca de comida, andei mesmo sem apetite. Misturo um pouco d’água e coloco num pote de margarina. O gatinho gosta. Toma com sofreguidão. Seu olho muito vermelho e melado, pode ser uma conjuntivite. Ou ele pode ser cego. Isso me enche de compaixão. Se ele for mesmo cego como posso deixá-lo? Pelo celular conto à filha, que estava fora, a novidade. Ela não demonstra nenhum interesse por um gato em nossa casa. Preocupada vou dormir e deixo que ele fique na sala, com a luz da cozinha acesa. Ele se comporta muito bem, sem nem um pio, digo, miado. Dormiu na caixinha que arrumei. Fico feliz, entendo alguma coisa de gatos. Já tive outros, há muito tempo, criados fora de casa. No outro dia vou à farmácia e pergunto a moça o que posso usar no olho de um gato. Ela me vende um frasco de soro fisiológico. Mas alerta: se for conjuntivite tem que usar um colírio com antibiótico. Em casa ele deixa que eu limpe seus olhos, até gosta, parece receber um carinho. Compro leite e ração, da melhor marca. Gatos custam caro. Bem sei. No terceiro dia, com pouca melhora da inflamação, consigo marcar uma veterinária, Dra. Marlene. Ele é levado dentro daquelas maletas. Já está bem esperto, foge quando vou procurá-lo. Volta de lá medicado, e com uma dose de penicilina para gripe. Notei mesmo que ele espirrava. Como a gente. Compro o colírio. Compro areia para suas necessidades. Potinho para ração, água e leite. Já tem nome, Riva. Nome de personagem, claro. O que seria da gente sem a ficção. Pelo telefone, a filha alerta que não quer gato quando voltar. Quem é a mãe mesmo? Trocamos de papéis, muitas vezes. Ela me dá muitos conselhos. De mãe para filha. Vou pensando no que faço com Riva, enquanto me afeiçoo a ele. Anda por todos os lugares, vai tomando conta de tudo. Tapetes, canetas, roupas, tudo vira brinquedo. Diversão das noites solitárias. O olho ferido se abre, me olha. A filha chega. Riva, dono da casa. Ela reage bem. Embora o combinado seja arranjar um novo lar para o hóspede. Com gente em casa Riva fica muito feliz. Inventa tanta maluquice. Usos estranhos para coisas banais. A gente acaba dando risada junto. O que tem de bicho na gente ainda? Muito pouco. Eles apenas vivem sua natureza, Clarice que o diga. E o assunto delicado vai ficando pra depois. E depois. Um dia chego em casa e a filha relata suas aventuras com o gato. Andaram até brincando juntos. Estão se entendendo.

Nem preciso dizer que Riva ficou. Enquanto escrevo ele se enfia debaixo do tapete, vem pro meu colo, pisa no teclado, dorme dentro de um cesto, tenta matar aleluias que caem do teto. E muitas vezes, quieto, olha para o nada. Os estados mudam muito rápido. Isso me impressiona. Prontidão e serenidade se equilibram. Algo em mim é acionado quando estamos próximos. Uma calma. Um aceitar. Um reagir. Preciso dele agora. Seja bem vindo, Riva.