segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Dos sonhos


Logo depois de admitir que não se lembrava de seu nome, a mulher entrou em estado de silêncio. Não conseguiu dizer palavra. Mesmo o café com pão e manteiga, tão saboroso e nostálgico, arrancou dela qualquer som.
Recolhida ao quarto estava agora. Os olhos vazios, nem chorar mais conseguia. O rio de seus olhos secara. Sabia que precisava de um novo plano. “Preciso comer, preciso remar, preciso dormir, preciso chegar, preciso viver...” Assim atravessou a tormenta. Agora eram outras as necessidades. Estava sentada numa cadeira confortável que ficava perto da janela do quarto. Só então reparou que era uma suíte. Aquela porta à esquerda devia ser o banheiro. Caminhou até ele, abriu a porta e se deslumbrou com uma pequena banheira. Acreditou que um banho poderia fazer bem. Há quanto tempo não tomava um? Ela que gostava de chorar debaixo do chuveiro, deixando as lágrimas se misturarem ao jato morno. Ela que cantava de alegria ou de tristeza. Ela que... Despiu-se e viu seu corpo no espelho. Estava magro, os seios mais murchos, os pelos crescidos. Temperou a água e deixou que escorresse, enchendo a banheira. Entrou e deitou-se, molhando também os cabelos. Fechou os olhos, a sensação de água limpa e quente derreteu sua dureza, soltou pequenos ais. Queria ficar ali dias e dias, queria se liquefazer e depois ir pelo ralo, queria sumir. Só isso. Chega. Para. Reage. (Sempre aquela outra, do lado de lá, dando ordens, empurrando-a pra frente). Fez espuma com um sabão de ervas, esfregou-se, com vigor. Tirar a pele morta. Depois enxaguou-se usando a ducha. Puxou a toalha que estava na parede. Enrolou-se e saiu. O espelho agora embaçado não registrou a nova mulher. Mais leve, recendendo a sabonete. Fez um turbante com a toalha menor, adorava turbantes. E acreditava no poder deles. Foi enxugar-se no quarto. Queria agora era ter um vestido limpo e novo para usar. Em cima da cama ele estava. Era azul-esverdeado com ramagens rosadas na barra. Decotado como gostava. Do lado, roupas de baixo brancas, calcinhas e um sutiã. Tudo ali parecia tão improvável, a mulher nem questionou. Como uma menina obediente trocou-se. A roupa ficou um pouco larga, mas agradou-lhe as cores e a textura, crepe. Voltou ao banheiro, penteou os cabelos que davam pelos ombros. Alegrou-se com o que viu. Quem ela era? Marina. Ana. Bárbara. Clarice. Selma. Inês. Beatriz. Nina. Maria. Preciso entender, preciso lembrar, preciso voltar, preciso recomeçar. Preciso lembrar, preciso recomeçar, preciso lembrar. Preciso voltar, preciso recomeçar, preciso entender. Sabia já do que precisava. Decidida a sair e investigar quem era, assustou-se com uma batida na porta. Quem é. Você não me conhece. Você não me conhece. Então empatamos. Riram-se as duas. E abriu-se a porta.
A mulher era negra, muito alta e tinha um sorriso franco no rosto. Abraçou-a com força. O vestido caiu bem, ficou bonita. Obrigada. Como você sabia o tamanho. Vi você no café da manhã. Ah. Trabalho aqui há muito anos. O que faz. Massagens terapêuticas, aromaterapia, reiki. Como se chama. Páscoa. O nome ressoou. Páscoa. Era um nome pouco comum. Mas a si era comum. Páscoa. Belo nome. Sim gosto muito dele. Venha comigo. Vou te oferecer meus serviços. Agora. Sim.
Ia saindo descalça, mas do lado da cama havia umas sandálias rasteiras de couro.  Calçou-as, ficaram exatas.  Apenas sorriu pra mulher. Meus pés são grandes. Os meus também. E riram de novo. Há quanto tempo não se ria. Nem sabia mais.
Atravessaram o mesmo salão de cedo e saíram pelos jardins. A direita uma sala grande, toda de vidros e cortinas. A mulher abriu a porta convidou-a a entrar. O lugar cheirava a incenso e tinha luzes artificiais. Uma música suave e repetitiva ao fundo. Deite-se aqui. A mulher obedeceu. Então Páscoa começou a aplicar-lhe a impostura das mãos, nos chacras. Sentia o calor de cada parte, todo o seu corpo em paz. Quase adormeceu, mantendo um estado de transe e relaxamento. Depois ouviu o pedido, dito em voz baixa e pausada: Agora quero que me conte seus sonhos.
A chave. A porta da memória se abriu. Ela desatou a fala, mas era calma e profunda.
“Quando ele foi embora chorei muitas noites. Minha cama virou um barco/mar. Naufraguei. Lutei para não sucumbir. Não sonhava nada. Dias de olhos abertos. Medo de afogar. Medo de saber. Quando comecei a sonhar parecia real. Era como as mil e uma noites, um sonho dentro do outro.
Nas primeiras noites sonhei que nosso amor era uma árvore. Sozinha não podia mais regar aquele arbusto. E então esquentei óleo de cozinha e joguei nas suas raízes para que secasse. Ela permanecia firme e não vergava. No dia seguinte estava com uma flor para mim. E o ritual se repetia, tantas vezes, tantas noites. Queria que aquilo acabasse. Numa manhã, achei um rastro. Era seiva, tinha escorrido para longe.
Nas segundas noites sonhei que nosso amor era um gato. Sozinha não podia mais alimentar aquele bicho. E então comprei veneno de ratos e coloquei na sua comida para que morresse. Ele comia tudo, devolvia, mas sobrevivia. No dia seguinte estava com um ronronar para mim. E o ritual se repetia, outras vezes, outras noites. Tudo parecia insano. Numa manhã, achei uma escama. Era peixe, tinha nadado para longe.”
Nas terceiras noites sonhei que nosso amor era uma criança de colo. Sozinha não podia mais criar aquele bebê. E então cravei minhas unhas em seu pescoço, para que não vivesse. Ele me olhava sem entender, mas não chorava. No dia seguinte estava com um sorriso para mim. E o ritual se repetia, noites sem fim. Era triste matar o amor. Numa manhã achei uma pena. Era pássaro, tinha voado para longe.
Três vezes matado, três vezes morrido, três vezes acabado.”

 Assim terminou a mulher. E abriu os olhos saindo do estado de sono.



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