Clarice era
aquela tia que ensinava tudo que não podia. Falar gíria e palavrão. Inventar
coisas em horas diferentes. Comer bobagens.
Era a tia que levava mil sobrinhos ao cinema e deixava a gente
assistir duas sessões. Não posso me esquecer da histeria coletiva em “Roberto Carlos e o Diamante cor de rosa”, no enorme
Cine Palladium.
Era a tia que fumava cigarros Capri. Chiquérrimos. Depois
Holywood, que aprendi a roubar pra fumar no quintal da casa da minha avó. Acho
que com uns dez, onze anos.
Tia Clarice era aquela tia que morava em São Paulo, onde eu
e minha irmã íamos passear sem os pais. E que aparecia de surpresa, no fusca da
família.
Tia Clarice era a tia que um dia se desquitou, coisa rara
pra época, ficou uns meses lá em casa até a vida se ajeitar de novo e depois
buscou as crianças, duas.
Nesse tempo, já adolescente, ficava horas escutando suas
histórias. O mundo dos adultos chegou cedo em minha vida. Eles me fascinavam.
Quando se mudou pro mesmo prédio da minha mãe a gente jogava
“buraco” até tarde da noite, fumando que nem umas chaminés.
Depois quando tinha já um filho pra criar morei com ela,
marido e meus primos, Cristina e André, em seu apartamento, até a minha casa
ficar pronta.
A vida foi afastando a gente, nem sempre consegui voltar a
ter com ela aquela intimidade boa da infância, adolescência e primeiros anos
como adulta. Mas ela sempre foi além de tia amada, a madrinha, uma fada
madrinha. Dessas que a gente tem na vida pra nos proteger. Nunca vou esquecer
sua risada. Alta, gostosa, livre.
Beatriz era a tia
artista. Linda, dona de uns olhos azuis esverdeados e uma voz de soprano.
Poderia ter sido uma diva da ópera. Foi professora e dona de casa, como todas
nós. Tocava piano. Vivia com um bom humor incrível.
Era a tia que nos presenteava com mimos fora de época e que
fazia campanha para os meus cabelos ficarem longos.
Nunca vou me esquecer de uma viagem ao interior, à velha
casa de minha avó. Eu, já uma moça de 21 anos, fui tomando conta de meus irmãos
junto com ela e seus filhos. Toda manhã ela acordava e fazia uma saudação ao sol,
cantando uma letra inventada, naquele quintal mítico, de tantas lembranças.
Perto da pitangueira.
Depois tomávamos café, ela sempre de regime, comia biscoitos
água e sal com leite desnatado. À noite me chamava no quarto e perguntava,
cândida: Quer um bombom? E abria a caixa de bombons de licor, enrolados em
papel encarnado.
Tivemos juntas uma experiência artística. Ela musicou e
interpretou um poema de minha mãe, em homenagem à Bárbara Heliodora. Eu dirigi.
Ensaiávamos na casa da professora, foi um momento bom. Ela cantava, soltava sua
voz aguda. Até no Teatrinho de Sabará nos apresentamos.
Novamente a vida nos afastou. A vida adulta tem esse lado
duro de nos tirar do convívio com seres tão queridos. Em nome do tempo, da
eficiência, do trabalho, do nosso egoísmo e sei lá mais o quê.
Mas ela sempre foi uma inspiração, uma fonte de energia e de
alegria. Uma tia querida, que nos mostrava meios de burlar o cotidiano. De ser
feliz.
Clarice foi primeiro. Há uns três anos. Depois chamou
Beatriz. Que partiu há menos de uma semana. Imagino o tanto de risadas que estão dando
lá em cima.
Um beijo, minhas queridas tias.