sábado, 9 de agosto de 2014

Dos vícios e virtudes

“A mulher que bebe”. Já fui identificada assim, certa vez, num bar distante. Virou uma pequena alcunha, embora não de todo verdadeira.  Sempre fui fraca para bebidas, embora goste delas. Menos dos destilados, mas nesse frio um conhaque me faz companhia nas noites, dose suficiente pra esquentar o peito, ou quase. “É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem tréguas. Mas – de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.” dizia Baudelaire. Ou como diria a minha sábia cunhada Martinha: “Uma mulher que bebe é uma mulher muito mais feliz...”
Talvez sejam os defeitos que nos permitam a embriaguez.
Pensando nisso saio pela rua, vou ao bar e compro duas cervejas comuns. Pretendo tomar garrafa e meia, amanhã tenho trabalho cedo.  Beber sozinha é uma liberdade conquistada. Lembro-me da primeira vez que vi uma amiga fazendo isso. Surpresa,  imitei o ato e desde então o pratico regularmente. Nem sempre é bom, mas sempre é uma pequena conquista. Beber sozinha é um teste de convivência. Ninguém para dividir suas alegrias e mágoas. As verdades sendo ditas suavemente ao seu ouvido.
Fumar já é um hábito que vai e vem controladamente. Desde cedo. Longos períodos de abstinência porque assim reza a cartilha de uma vida saudável. Mas como uma pessoa que, machucada, usa muletas, recorro a ele sempre que preciso. Como agora. A fumaça que arde por dentro também consola. Depois demoro a me livrar dele, mas quando me sinto mais forte é possível. Foi assim de outras vezes.
Outros vícios não tenho. A não ser que consideremos vícios o amor e a escrita. Que muitas vezes se confundem. Esses são perigosos. “O amor é uma droga pesada”, dizia a poeta Ana Cristina César.  E se matou de tanto amor, ou por falta dele. Sua abstinência provoca delírios, tremores, insônia. Sua overdose também. A sensação embriagante obriga os viciados a desconhecerem a razão e a agir como loucos. Quando felizes, no auge da paixão, vivem flutuantes, por cima do mesquinho cotidiano. Quando tristes, no auge do abandono, mal conseguem realizar as tarefas comuns. Vivem sempre fora do mundo, pobres amantes. Desses vícios tenho muito medo, sou ainda iniciante no assunto. Devo confessar que tenho experimentado ambos, curiosa. Mas aprendi: qualquer descuido pode ser fatal.

P.S: A beleza da lua lá fora quase anula a necessidade desse texto. De qualquer texto. Olhar a lua seria também um vício?

domingo, 3 de agosto de 2014

Amigas



Duas mulheres frequentam minha casa. Dona Tristeza e Dona Alegria.
Dona Alegria entra sem bater, quase invade o lugar, mexe em tudo, gosta de beber e ultimamente até de fumar. Fala sem parar e numa altura de mamma italiana, ri desbragadamente e faz piada de tudo. Seus olhos brilham e gosta de mostrar os dentes num sorriso sem fim. Tem pudor nenhum de falar montes de palavrão, todos cabeludos, que vieram do tempo que andou pelo Acre. Gosta de decotes e de se pintar no espelho. É uma mulher exuberante, de seios fartos e sempre descabelada. Louca por água e sol. Muitas vezes vem vestida de Euforia e aí ninguém segura essa mulher. Tem um apetite insaciável e me ajuda a criar pratos fartos e a comer sem culpa. Muda de assunto todo o tempo, emendando uma história na outra e encontra motivos para se divertir até com a desgraça alheia. Não sem antes rir de suas próprias. Como veio vai embora sem avisar, deixando a porta aberta e roupas jogadas pelo chão.
Dona Tristeza gosta de vir à noite e parece ter o poder de passar por baixo da porta. Quando percebo já está sentada na cadeira do quarto, à espreita. Velando pelo meu sono. Seus olhos fundos não me perguntam nada. Seu nome é silêncio. Remói lembranças, procura nas gavetas por fotos antigas e pequenos objetos, faz questão de me mostrar. Fujo dela me escondendo no banheiro. Quando saio do banho ela me estende a toalha. Muitas vezes tem um meio sorriso no rosto, como se me culpasse por ter ficado em intimidades excessivas com Dona Alegria. Nem preciso dizer que não se bicam. Quando vem vestida de Melancolia gosta de me convidar pra uma taça de vinho, que sorvemos como um doce veneno. Depois fica com o olhar perdido, imóvel, ou cobre o rosto com as duas mãos, perplexa. É uma figura bonita, discreta, cabelos presos num coque e brincos de pérola. Magra, se esquiva por todos os vãos e surpreende com aparições que me aguçam de súbito o choro. Quando consegue isso passa seus dedos finos em meus cabelos e me consola. Seu abraço provoca arrepios no meu corpo, dizem que ela tem uma prima que...

Nunca vem juntas. Alegria adora um sábado, gosta do dia e sua luz. Tristeza ama os domingos e a noite ganha intensidade. Às vezes trocam horários e me confundem. A presença delas tem sido constante nesse inverno que se alonga. Não consigo eleger uma como melhor amiga. Pode parecer estranho, mas preciso das duas.