quarta-feira, 3 de setembro de 2014

o ensaio

...então depois de quase consumir-se em outra noite de insônia ela decidiu. “Amanhã cedo vou começar a ensaiar”. Sim, faria isso. Sua arte tinha que servir pra ela mesma. Agora seria egoísta, egocêntrica e narcisista. Falaria só de si e que se foda o mundo. A ideia endureceu até que se levantou da cama. Buscou na geladeira aquele resto de bolo de chocolate com mousse de maracujá, da festa familiar do domingo, serviu-se uma dose de Domecq que comprara com a filha para o inverno, pegou o maço vermelho de Coyote com o último cigarro de palha e começou a digitar freneticamente. Precisava agora de todos os prazeres, para suprir a falta que o amor exagerado lhe fazia. Ah...amanhã começaria do ritual de enterrar e desenterrar coisas na terra do quintal. E daria voltas na casa correndo com um vestido que se arrastaria pelo chão. Mas antes pensou em se aquecer, saudar o sol como vinha fazendo e relembrar alguns movimentos do Tai’chi. Conversas com o espelho já eram comuns, mas amanhã seria de verdade, sem teatro. (o bolo de chocolate curtido em três noites estava ótimo junto com o conhaque...) Sim, começaria do lado de fora com seus rituais. Eram rituais de cura, mas não sabia exatamente de quê. Não queria falar só de (des)amor e solidão. Queria mais, queria curar-se e, curando-se de si mesma, ajudaria outras mulheres. Sim o seu “espetáculo”, seria apenas para mulheres. Elas que são a dor do mundo. Sim, “tudo no mundo começou com um sim” e pensava em clarice e nela mesma, que teria que fazer da arte o seu antídoto. A ideia espantou os demônios que vinham sempre fazer-lhe visitas à noite.  Deixou-a excitada e quase feliz. A aventura ia começar. Sim. Daria a si mesma o luxo de errar. Sim. Deixaria seus cabelos crescerem. Sim. Faria uma tatuagem nas costas. Sim. Sim. Sim.
Voltou para cama e dormiu, desejando que o dia rompesse e, com ele, sua liberdade.