Em terra a jornada também seria
longa e acidentada. Começou a caminhar bem devagar. Seus pés estavam inchados.
Usava umas botas quando estava no mar, mas numa das tempestades elas tinham
naufragado também. A camisa muito rasgada tinha um grande talho na altura do
seio esquerdo. E ela não usava sutiã. Arrumou-se como pode. Para pedir ajuda lá
no vilarejo precisava estar pelo menos com aparência de uma pessoa normal. Mas
normal não estava há muito tempo. Não tinha como explicar aquela viagem sem
rumo. A viagem podia ser um delírio dela. Pensou em inventar uma história,
gostava delas. “Travessias. Conhecem? Fica na divisa do Sergipe com Alagoas,
vila pequena quase desconhecida, que uns amigos tinham indicado. Lugar
maravilhoso, praias desertas, apenas uma pousada de belgas onde ficaram
hospedados. Foi passar férias com o marido, saíram para um passeio breve, numa
pequena embarcação. Era julho, no dia de seu aniversário de casamento. Tudo ia
bem até que se desentenderam por uma bobagem, ciúmes. Passaram a noite brigados,
deitados na cama sem se falar, um virado pra baixo e outro pra cima. Coisa
raríssima. No dia seguinte ele sugeriu um passeio, queria que tudo ficasse bem,
ela era a mulher da sua vida, queria viver com ela até ficarem velhinhos, todas
essas coisas, etc. Ela aceitou as pazes, dependia dele pra tudo. Nem podia
imaginar o que seria viver sem aquela pessoa. Saíram felizes, reconciliados. O
dia bonito, ameno. Eles se abraçando, carinhosos. Como era bom estar ali.
Estavam sem coletes. Pra quê? Nada podia acontecer. No meio do caminho ele
disse que precisava contar uma coisa. Começou bem devagar, assim como se fosse
algo bem natural. Sem olhar nos olhos dela. Estranho. Corpo meio afastado. Palavras
que se formavam em câmera lenta nos seus lábios. Resumindo: tinha outra e
queria ficar com ela. Preciso viver outra história. Era uma moça bacana, sabe?
Artista também. Pintava gaiolas com pássaros dentro. Nossa que coisa horrível,
pensou. Pássaro em gaiola nem em pintura. Ela só pensou. Ouviu até o fim.
Engoliu o sempre choro. Depois disse que tudo bem. Entendia. A vida é injusta
mesmo. E depois ela também tinha outros planos. Eles estavam se atrapalhando.
Achando que podiam viver só de amor. Não, não se pode. Precisava dar mais certo
na vida, fazer planos, voltar a ganhar dinheiro, viajar, fazer um curso fora, estudar francês. Aparentava
compreensão, mas um mundo inteiro passava pela sua cabeça. Vontade de esganar
essa pessoa que agora desconhecia. Como é que pode? Aquela voz mansa. Aquelas
promessas. Aquele amor esparramado. Sabe, ela apareceu na minha vida. Não tinha
planejado. Queria mesmo era ficar contigo. Juro. Vamos fazer um ritual bem bonito.
Continuo te amando. Eu também. Sempre. Ainda. Sempre ainda. De repente o choro
veio, vazou dos seus olhos e com ele todos os ódios. Ele impassível. Ela ficou
atrás de mim, sabe? Não tivemos nada ainda. Ah tá...até eu, que sou mais boba,
posso acreditar nisso? O que isso importa também. Preservo seus arrepios.
Foda-se. Falou pausadamente. Colocou o colete. Amarrou bem. Depois ficou em pé
no barco. Ele se assustou. Quando se levantou para intervir ela o empurrou com
força. Ele caiu. Não sabia nadar. Remou
rápido, o mais rápido que sua raiva permitiu. Ele ficou. Tão bonito. Ela nem
olhou pra trás.”
Riu como se fosse louca. Se fosse.
Ficou assustada. Não sabia como aquela história saíra de sua cabeça. Nunca
faria isso. Talvez fosse a fome ou o cansaço. Essa versão levaria para a
terapia. Vou escrever, quando tiver papel e caneta. Mas guardaria só pra ela.
Para os outros diria “Fui passar férias com meu namorado, saímos para um
passeio breve, numa pequena embarcação. Era julho, no dia de nosso aniversário
de casamento. Nunca tinham navegado antes, mas o mar estava calmo e tudo ia bem
até que numa onda mais forte ele foi atingido e caiu no mar. Porque ele não
colocara o colete, tão teimoso? Tentou salvá-lo. Mas ele era grande apesar de
magro. Fez o que pode. Ficou arrasada. Gostava tanto dele. Mas tinha que lutar
pra sobreviver também”. Era ele ou ela.
E assim, inventando, venceria as
léguas pela areia da praia, anoitecida. Talvez acreditassem nela. E agora já
estava mais próxima das luzes que viu quando deu naquele lugar.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOi Ana! Quando nossas garrafas lançadas ao mar encontram pessoas ficamos felizes. Que bom receber seu olhar. Esse é o desejo dessa escrita: trocar, tocar, afetar. Realidade e ficção se misturam pra gente dar conta de viver. Os textos desembocam num espetáculo solo, chamado Domingo,com estreia prevista para abril de 2015. Sou eu quem te agradece as palavras e carinho. Seguimos em contato. Abraço.
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