domingo, 23 de novembro de 2014

Em terra, uma história

Em terra a jornada também seria longa e acidentada. Começou a caminhar bem devagar. Seus pés estavam inchados. Usava umas botas quando estava no mar, mas numa das tempestades elas tinham naufragado também. A camisa muito rasgada tinha um grande talho na altura do seio esquerdo. E ela não usava sutiã. Arrumou-se como pode. Para pedir ajuda lá no vilarejo precisava estar pelo menos com aparência de uma pessoa normal. Mas normal não estava há muito tempo. Não tinha como explicar aquela viagem sem rumo. A viagem podia ser um delírio dela. Pensou em inventar uma história, gostava delas. “Travessias. Conhecem? Fica na divisa do Sergipe com Alagoas, vila pequena quase desconhecida, que uns amigos tinham indicado. Lugar maravilhoso, praias desertas, apenas uma pousada de belgas onde ficaram hospedados. Foi passar férias com o marido, saíram para um passeio breve, numa pequena embarcação. Era julho, no dia de seu aniversário de casamento. Tudo ia bem até que se desentenderam por uma bobagem, ciúmes. Passaram a noite brigados, deitados na cama sem se falar, um virado pra baixo e outro pra cima. Coisa raríssima. No dia seguinte ele sugeriu um passeio, queria que tudo ficasse bem, ela era a mulher da sua vida, queria viver com ela até ficarem velhinhos, todas essas coisas, etc. Ela aceitou as pazes, dependia dele pra tudo. Nem podia imaginar o que seria viver sem aquela pessoa. Saíram felizes, reconciliados. O dia bonito, ameno. Eles se abraçando, carinhosos. Como era bom estar ali. Estavam sem coletes. Pra quê? Nada podia acontecer. No meio do caminho ele disse que precisava contar uma coisa. Começou bem devagar, assim como se fosse algo bem natural. Sem olhar nos olhos dela. Estranho. Corpo meio afastado. Palavras que se formavam em câmera lenta nos seus lábios. Resumindo: tinha outra e queria ficar com ela. Preciso viver outra história. Era uma moça bacana, sabe? Artista também. Pintava gaiolas com pássaros dentro. Nossa que coisa horrível, pensou. Pássaro em gaiola nem em pintura. Ela só pensou. Ouviu até o fim. Engoliu o sempre choro. Depois disse que tudo bem. Entendia. A vida é injusta mesmo. E depois ela também tinha outros planos. Eles estavam se atrapalhando. Achando que podiam viver só de amor. Não, não se pode. Precisava dar mais certo na vida, fazer planos, voltar a ganhar dinheiro, viajar, fazer um  curso fora, estudar francês. Aparentava compreensão, mas um mundo inteiro passava pela sua cabeça. Vontade de esganar essa pessoa que agora desconhecia. Como é que pode? Aquela voz mansa. Aquelas promessas. Aquele amor esparramado. Sabe, ela apareceu na minha vida. Não tinha planejado. Queria mesmo era ficar contigo. Juro. Vamos fazer um ritual bem bonito. Continuo te amando. Eu também. Sempre. Ainda. Sempre ainda. De repente o choro veio, vazou dos seus olhos e com ele todos os ódios. Ele impassível. Ela ficou atrás de mim, sabe? Não tivemos nada ainda. Ah tá...até eu, que sou mais boba, posso acreditar nisso? O que isso importa também. Preservo seus arrepios. Foda-se. Falou pausadamente. Colocou o colete. Amarrou bem. Depois ficou em pé no barco. Ele se assustou. Quando se levantou para intervir ela o empurrou com força. Ele caiu.  Não sabia nadar. Remou rápido, o mais rápido que sua raiva permitiu. Ele ficou. Tão bonito. Ela nem olhou pra trás.”

Riu como se fosse louca. Se fosse. Ficou assustada. Não sabia como aquela história saíra de sua cabeça. Nunca faria isso. Talvez fosse a fome ou o cansaço. Essa versão levaria para a terapia. Vou escrever, quando tiver papel e caneta. Mas guardaria só pra ela. Para os outros diria “Fui passar férias com meu namorado, saímos para um passeio breve, numa pequena embarcação. Era julho, no dia de nosso aniversário de casamento. Nunca tinham navegado antes, mas o mar estava calmo e tudo ia bem até que numa onda mais forte ele foi atingido e caiu no mar. Porque ele não colocara o colete, tão teimoso? Tentou salvá-lo. Mas ele era grande apesar de magro. Fez o que pode. Ficou arrasada. Gostava tanto dele. Mas tinha que lutar pra sobreviver também”. Era ele ou ela.


E assim, inventando, venceria as léguas pela areia da praia, anoitecida. Talvez acreditassem nela. E agora já estava mais próxima das luzes que viu quando deu naquele lugar.

2 comentários:

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  2. Oi Ana! Quando nossas garrafas lançadas ao mar encontram pessoas ficamos felizes. Que bom receber seu olhar. Esse é o desejo dessa escrita: trocar, tocar, afetar. Realidade e ficção se misturam pra gente dar conta de viver. Os textos desembocam num espetáculo solo, chamado Domingo,com estreia prevista para abril de 2015. Sou eu quem te agradece as palavras e carinho. Seguimos em contato. Abraço.

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