Foram três meses até chegar ali. Estaria
feliz se não fosse náufraga.
Lembrava-se apenas de ter sido
lançada ao oceano no dia 7 de julho de 2014. Não sabia se em sonho ou delírio. De repente se viu no mar, com embarcação frágil, vela tosca e
dois remos. Não sabia remar, nem velejar, muito menos entendia porque estava
ali. Mas estava. Sem água doce, nem comida. Sozinha com seu medo e sua coragem.
Chorava de tristeza, tinha lembranças dispersas, já não sabia de onde vinha.
Vinha de um acidente? Não se lembrava de nada. E a nova lida não dava tempo de
se perder em reminiscências.
Logo, ainda sem entender de todo
a gravidade, com sua dureza capricorniana começou a traçar um plano. Preciso
comer, preciso remar, preciso dormir, preciso chegar, preciso viver. Repetia
essas palavras como um mantra. Começou a içar a vela, com muito custo, pois era
pesada apesar de pequena, nunca teve muita força nos braços. Um bom vento
soprava e viu isso como um sinal. Junto remava, desajeitadamente. A ação do
vento e de seus braços podiam levá-la longe, pensava. Mas onde? Nem bússola ou
qualquer instrumento de navegação. Apenas o sol que se punha, era seu norte. No
fim do primeiro dia apagou exausta sobre o pequeno banco de madeira e dormiu,
sem ver o céu de lua enorme. Acordou faminta. Procurou nos bolsos das calças,
na esperança de encontrar algo. Com alegria descobriu uma bala de hortelã e um
resto de biscoito mole, doce, do pavê que fizera uns dias antes. Ah! Sim! Numa
festa em sua casa, com amigos, fizera um pavê, daqueles antigos, receita da
avó. Agora se lembrara.
Num átimo
peixes prateados saltaram pra dentro do barco, ela conseguiu pegar dois. Os
japoneses comem peixe cru, lembrou-se. Com um misto de fome e nojo abriu o
peixe com as mãos, arrancou as vísceras e comeu a carne, rosada e amarga. Por
hoje seria só isso. Mas a sede era imensa. Bebeu água salgada. Enrolou a camisa
clara em volta do rosto, para se proteger. Nuvens escuras anunciavam tempestade. Atou-se ao barco com um cinto de pano, que
tinha em volta da blusa. Mas antes procurou algum recipiente para juntar água.
Achou uma lata velha, num canto, quase enferrujada. E desceu as velas. A chuva veio forte. Ondas varriam o
barquinho, que resistia por milagre. Por sorte não durou muito e agora tinha água para
beber.
Sabia que
ia demorar naquele modo novo de viver. Consolou-se cantando bem alto quando a
tarde caía. Assim passaram-se dias e noites e dias e mais noites. Nem sabia
quantas. Quando era vencida pelo cansaço dormia exausta, sonhava. Via
uma casa amarela, com árvores grandes em volta, via alguém de longe, não
identificava seu rosto. Ele arrumava coisas no quintal. Tinha uma voz mansa e
dizia palavras bonitas. Logo o sol forte queimava sua pele e a luta recomeçava.
Nada de
terra, nem outros barcos. Apenas aquele mar imenso, chamando para as
profundezas. Talvez fosse melhor se deixar ir, como uma sereia torta e cansada,
para dentro dele. Seu peito doía tanto. Era só um buraco, uma falta e um
desconhecimento de tudo. Em toda sua vida nunca tinha sentido isso. Vai passar,
vai passar. Mas não. Era grande e funda aquela nova sensação. O que fazia ali?
Tentava se agarrar em alguma imagem, não queria ceder assim. Um vento forte
encrespou o mar e uma onda partiu o mastro que caiu quase sobre ela. Sem vela,
tudo ia ficar mais difícil. A cada golpe, sentia que precisava reagir. Sua
garganta tinha desejos de dizer coisas. E vociferava contra tudo e todos. Quem?
Depois remou com energia, sem rumo, mas avançou. Buscava terra, mas terra perto
não havia.
Aprendeu
a pegar peixes com uma ponta da madeira do mastro que se partira. E outras
chuvas garantiram água, colhida na lata e sorvida com parcimônia. Quase se
acostumara àquilo. E as noites eram esplêndidas. A natureza oprimia de tão bela. Soberana. Mais calma rezava e pedia proteção. E agradecia por estar ali,
apesar de tudo. Ficava de olhos abertos deixando o vento e o acaso levar a
embarcação. Dormia pouco com medo de algum peixe grande ou onda que virasse o
barco. Mas sonhava. Eram sonhos confusos, com tantas imagens e rostos que mal
reconhecia. Via crianças, três. Seus filhos? Via um teatro grande, luzes
apagadas. Via um casal sorridente, seus pais? Um vestido branco secando ao sol.
Uma senhora velhinha que a abraçava.
Depois de
um longo tempo à deriva adoeceu. Teve febres e calafrios. Dores fortes nos rins, que subia pelas
costas, enjôos. Enrolou-se no tecido
grosso da vela. Desistisse? Não. Vou reagir, vou reagir. Preciso viver, preciso
remar, preciso... Nem sabia mais do que precisava. Nada mais importava. E dormiu
um sono profundo. Viu sua imagem como em filme. Irmã mais velha de cinco
irmãos, pais poetas, infância no interior. Casou-se cedo, com um homem bom, teve três filhos,
dois meninos e uma menina. Construiu casa. Fez-se artista. Era melancólica. Gostava
de sol. Um dia foi morar noutra casa, sozinha. Morou em terras distantes,
equatoriais. Lembrou-se de tanta luta, tanta angústia, da solidão, da
esperança. Do encontro: amor-oceano. Perigoso e profundo. A casa, o mar, o
banho de mangueira, a cachoeira, as promessas, o café da manhã, tapioca,
cuscuz, cerveja, lua, casa, janela, cama, café, beijo, sono, corpo, música, viagem. Dúvida, medo. Lembrou-se
de cada palavra e gesto. Lembrou-se do fim. Explosão, choro, lágrima, raiva,
dor, tristeza. Naufrágio. Agora entendia porque estava ali.
Acordou
com um tranco forte no fundo do barco. Pensou no pior. Era um banco de areia. Desceu,
trôpega. Em alguns passos, pés dentro d’água morna, estava em terra firme. Olhou mais uma vez o
barco, exausto, exausta, tão machucado
quanto ela. Sentou-se na areia, chorando pegou conchas e sorriu para uma pequena estrela
do mar. Sobrevivera. Longe dali avistou luzes. Vou descansar um pouco, pensou. Depois iniciaria nova etapa.
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