domingo, 24 de agosto de 2014

A calma

Então ao quadragésimo terceiro dia sobreveio-lhe uma calma. Foi depois do chá de hortelã e de dar boa noite a sua filha. Vinha de um dia cheio e de uma noite de ensaio. Nem sabia mais o que era dormir mais de cinco horas de sono. Seus olhos estavam fundos. Emagrecera uns três quilos, o que, afinal, deixava-a meio alegrinha. Queria ser magra. Então, enquanto arrastava sua falta de esperança pela casa, esquentando a água no caneco, e olhando a pia desarrumada, sentiu uma mudança. Tempestade que cessa assim como veio. Sem aviso. Sorriu um pouco, com medo de estar sendo ingênua de novo. Não. Era diferente. Sentou-se na cadeira e apagou as luzes, queria aproveitar intensamente aquele momento.  A luminosidade da rua atravessava as tantas janelas e a porta, de postigo, que compraram juntos, depois de tanta procura. Acendeu um cigarro de palha, vício ao que voltara até se sentir melhor, e fumou, sorvendo longas tragadas. De dentro via o quintal que se iluminava tanto pela noite estrelada e limpa, quanto pelo pequeno refletor que se acendia quando passavam em frente à casa, no passeio. "Assim você fica mais segura". Sempre preocupado com seu bem estar, com sua vida. Cercando-a de tantos cuidados que a deixavam mimada e feliz como uma adolescente. Mas na hora não pensou nisso. De certo modo meditava, porque conseguia não pensar em nada, apenas observava as coisas. O gato branco se movendo lento lá fora. O balcão bonito de madeira de lei da cozinha, os azulejos em mosaico, as plantas que se abriam em flor, a orquídea com três novos brotos, prometendo beleza. Os recortes das grades projetavam-se nos vidros e dos vidros vinham dar dentro de casa, no chão de cimento queimado. As poltronas oferecendo aconchego. O telhado espiando do alto para ela. Tudo quietava. Era um silêncio que começava dentro dela e pedia mais silêncio e mais calma. Como um turbilhão ao contrário, que vai perdendo força, até terminar. Aproveitou daquela sensação nova e alentadora. Pronto? Acabou então? Podia ter uma vida de volta? Era cedo pra dizer. Levantou-se para ir à cozinha, encheu um copo d’água no escuro, foi para o seu quarto. A cama já estava arrumada, com muitas cobertas e dois travesseiros. Parecia macia e quente. Deitou-se, rezou um pouco. Agradeceu e dormiu. Profundamente. A partir de agora seria assim: uma noite de cada vez.

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